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[29/09/2020] Eu Escrevo Poemas


Sim, já consigo ver você, caríssimo leitor, revirando os olhos de tédio. Mas deixe que eu advirta duas coisas: a primeira delas é que o motivo principal desta postagem não é apresentar um de meus poemas; a segunda trata-se de lembrar ao convidado que ele está lendo um blog e que portanto não precisa guardar nenhuma espécie de falso interesse para exercitar os modos e a habilidade evolutiva mais útil em sociedade. Me referia à dissimulação.

Com efeito, meu caro, retire os sapatos e simplesmente mude de página, caso esta não te agrade, porque, devo dizer? agora estou pensando comigo mesmo que motivos eu tenho para escrever poemas, e não me parece haver resposta que me satisfaça. Ou pelo menos não uma que possa me satisfazer e que ao mesmo tempo seja crível.

O que quero dizer? Nem eu mesmo o sei. Carrego um desejo de alcançar certo ideal de beleza que trago comigo. Beleza traduzida na proporção em que acerto a colocação das palavras dentro do verso, sua escolha precisa, sua "cor" adequada ao timbre do poema. Me frustra saber que não o consigo tanto quanto gostaria e, mais, que quando o consigo, logo me faltam mais palavras acertadas e tenho de voltar à intensa luta com o pronome, o substantivo, o adjetivo e o verbo, com o perdão das classes que ficaram de fora.

Algumas pessoas que conheço e para quem já mostrei algum de meus poemas me perguntaram porque nunca os publiquei, a resposta mais honesta seria dizer que não deu. E por que não deu? Não deu porque eu não tinha poemas o suficiente. Demoro para escrever. A poesia fica deitada lá, seja na folha do caderno, seja no arquivo de computador, por semanas, meses... já finalizei poema que ficou mais de um ano engavetado, e, nesse ritmo, não tenho nem 50 poemas prontos. O mercado editorial quer poemas espertos e a granel. Foi-se o tempo dos opúsculos. Ninguém publicaria nenhum dos livros de poemas que marcaram as gerações modernistas. Os leitores de poesia precupam-se se os seus quarenta e cinco reais compram mais de 150 páginas.

Nunca publiquei meus poemas, mas enviei sim a uma revista ou outra, onde publicaram versos que hoje abomino e preferiria não os haver mandado. Fazer o quê? Estão lá. Paguei o preço que se paga para ser lido. A possibilidade do arrependimento.

Ser lido, para mim, é algo de um desejo fundamental? Sim. Eu gostaria de ser lido, se não por muita gente, por muita gente que tenha sentimentos estéticos apurados. A fama não me ilude, reconhecimento verdadeiro se dá entre iguais: eis o motivo do desejo: me reconhecer como poeta através do olhar e do sentimento do outro. Até lá, não me chamo de poeta e talvez nunca me defina dessa maneira. Isto é, de certa forma não acredito que o caminho para esse auto-reconhecimento seja evidente: sou publicado e notado por essa ou aquela pessoa? E daí? Onde começa a fruição real e onde termina o pedante consumo de "cultura"? Não quero me reconhecer no espelho dos olhos dos pernósticos.

Conquanto deseje ser lido, esse desejo é muito menor que o desejo de alcançar um tipo de ideal estético que pra mim é ainda sequer claro o bastante. E aqui não estou romantizando e falando de "minha voz". Foda-se minha voz. A originalidade é um feliz acidente no percurso do aprendiz. Se trago algo de novo nos meus poemas, não é culpa ou mérito meu, foi como as coisas aconteceram.

Eu não sinto em mim a necessidade quase física de Rilke em fazer versos (apesar de me afligir ficar sem escrever nada por longos períodos), nem acho que o poeta é quem vê a realidade de uma maneira diferente. No primeiro caso, acho que o Rilke sofria dos nervos. No segundo caso, de certa forma, todos vêem o real de maneira distinta. Poesia pra mim é oficiar com a palavra e com a língua, mais que com o real ou o imaginado. É fazer estripolias semânticas e sintáticas, usar a linguagem de uma maneira inesperada onde não só a carga de sentido das palavras ganha uma dimensão completamente nova, como também evocam (seja pela musicalidade ou pela falta dela) verdadeiros ambientes onde se passa tudo aquilo que está escrito. O poema é um ecossistema onde as palavras se relacionam de maneira livre. E quanto mais rico, mais frágil ele é.

Manter o equilíbrio de um verso já é difícil o bastante, manter o equilíbrio de um poema inteiro é desafiador. Uma pequena vírgula muda tudo, uma proparoxítona no lugar errado e o castelo de cartas cai por terra. Oficiar com a palavra também exige paciência, como um jogo bem jogado onde o adversário é você com e seu desejo pulsante de arrematar e ver se ficou "bom o bastante". Me convenci que "bom o bastante" não existe em matéria de poesia. Existem apenas dois estados de poema: os completos e os incompletos. Também aprendi que ter um poema completo, muitas vezes, significa, em oposição a continuar, saber quando parar de escrever. E essa digressão me faz voltar à pergunta: por que escrevo?

Escrevo para sentir que vez ou outra consegui fazer cócegas na beleza. Escrevo, talvez, para sentir (quase religiosamente) que existe algo além. Algo a que temos acesso através de uma coisa aparentemente tão banal quanto o signo linguístico. Esse sentimento, que tenho comigo quando me parece que acertei em qualquer coisa no poema, é indescritível e excitante. Sem motivo algum para além de me parecer bom. E aqui entra a questão da credulidade... Talvez, pra a maioria, nada disso seja crível  e eu os compreendo, eu não me convenço, também. Mas quando eu sinto vibrar em mim qualquer instância da beleza, compreendo imediatamente que me foi algo imposto por pura generosidade de algo maior do que eu. Algo para além de mim e que me deixa, vez ou outra, entrar nesse estado de enleio encantado. E isso, que pode soar como o mais puro devaneio, para mim, é motivo o bastante para escrever.